11.26.2008

baixa da memória

Quando eu era pequenina, morávamos ali entalados entre a Baixa e o Castelo, ao Largo do Caldas, na mesma casa onde a minha mãe se fez mulher. Frequentei até à 3ª classe a antiga escola feminina nº 28, na Rua da Madalena. Era um prédio, não tinha recreio ao ar livre e as funcionárias desdobravam-se a organizar actividades em grupo para não se gerar o caos. Jogávamos ao lenço e à mensagem, numa escola sem condições, meninos ricos e meninos pobres, filhos das peixeiras das bancas do mercado do Caldas e filhos de advogados. Filhos da Revolução.
Ia pela mão à Igreja de Sto. António, vi o papa quando veio à Sé e estava na Praça da Figueira, à espera de ouvir o meu primeiro comício, quando se soube do acidente de Sá Carneiro. Tinha cinco anos e não sabia o que era a morte. Vi-a pela primeira vez nos olhos assustados do povo na rua.
O meu avô ourives tinha uma pequena oficina num 3º andar da Rua dos Fanqueiros. Passei muitas tardes de férias empoleirada num banco, a vê-lo trabalhar com minúcia, enquanto me explicava das ligas e das pedras preciosas. Não me ficou o gosto por jóias.
Havia uma loja em Alfama onde se escolhiam galinhas e coelhos vivos. Os bichos iam pelo cachaço, lá para dentro, voltavam num saco. Ainda hoje não como coelho mas pélo-me por uma boa canja.
Às vezes íamos ao hospital das bonecas, na Praça da Figueira, não para tratar das minhas Nancys (que eram bem estimadas), mas porque na mesma loja se arranjava malhas nas meias de vidro das senhoras. Íamos às compras ao Celeiro, à Polux e aos armazéns Ramiro & Leão. Esse era o meu passeio favorito porque brincava aos elevadores com o ascensorista. Muito composta, cumprimentava as senhoras, perguntava o andar, só não podia mexer nos botões. Lá em cima, escolhiam-se peças a metro para ir pôr na modista, a fazer os figurinos da Loja das Meias.
No princípio de Dezembro a tradição mandava ir ver as luzes e as montras. De nariz colado ao vidro, deliciava-me com as construções de Legos em movimento e sabia bem que o Pai Natal estava muito atento a essas incursões, porque acertava sempre com os meus pedidos.
Estava em Ponta Delgada no Agosto em que Lisboa ardeu. Chorei copiosamente. Os armazéns do Chiado e as lojas Garrett são incontornáveis no meu imaginário de infância e essa perda que o televisor mostrava soou a nova morte, depois de Sá Carneiro, da avó Virgínia e do avô Severiano. Tem graça, há quanto tempo não lhes escrevia o nome…
Porque me havia de dar para isto agora? Talvez seja contágio dos posts da Fernanda Câncio, que regularmente versam políticas e práticas na Baixa e os seus pequenos quotidianos.
Apeteceu-me lembrar da menina que eu ali já fui.
E fui tão feliz e nem sabia.
Nessa Baixa que dizem não ter condições para se criarem crianças felizes.
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2 comentários:

Maria das Mercês disse...

Não fui menina em Lisboa, mas vivi lá uns riquíssimos 8 anos, em que "gozei" a Baixa o mais que pude. E a excitação, o deslumbre que sentia sempre que por lá passeava...

SaraChuva disse...

Que lindo Su :)

Que bonita crónica da tua infância meu doce...
Amei ler este post, que bondade a tua dividires de tuas catraias lembranças com este povo que te lê.

Muito obrigada pelo privilégio :*